27 de ago. de 2010

Amor/Caridade, Virtude Teologal


Amor/Caridade, Virtude Teologal

O Catecismo da Igreja Católica define a Caridade como sendo “a virtude teologal pela qual amamos a Deus sobre todas as coisas por Ele mesmo, e ao próximo como a nós mesmos, por amor de Deus.” [1]E prossegue elucidando a essência desta virtude profundamente cristã: “Jesus faz da caridade o mandamento novo”. Amando os seus ‘até ao fim’ (Jo 13, 1), manifesta o amor do Pai, que Ele próprio recebe. E os discípulos, amando-se uns aos outros, imitam o amor de Jesus, amor que eles recebem também em si. É por isso que Jesus diz: ‘Assim como o Pai me amou, também eu vos amei. Permanecei no meu amor’ (Jo 15, 9). E ainda: ‘É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei’(Jo 15, 12). Fruto do Espírito e plenitude da Lei, a caridade guarda os mandamentos de Deus e de Jesus: ‘Permanecei no meu amor. Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor’(Jo 15, 9-10). Cristo morreu por amor de nós, sendo nós ainda ‘inimigos’ (Rm 5, 10). O Senhor pede-nos que, como Ele, amemos até os nossos inimigos, que nos façamos próximos do mais afastado, que amemos as crianças e os pobres como a Jesus mesmo. O exercício de todas as virtudes é animado e inspirado pela caridade. Esta é o ‘vínculo da perfeição’ (Cl 3, 14). A Caridade é a forma das virtudes: articula-as e ordena-as entre si; é a fonte e o termo da sua prática cristã. A caridade assegura e purifica a nossa capacidade humana de amar e eleva-a à perfeição sobrenatural do amor divino. Os frutos da caridade são: alegria, paz e misericórdia. A Caridade exige a prática do bem e a correção fraterna; é benevolente; suscita a reciprocidade, é desinteressada e liberal: é amizade e comunhão. A consumação de todas as nossas obras é o amor. É nele que está o fim: é para a conquista dele que corremos; corremos para lá chegar e, uma vez chegados, é nele que descansamos.[2]
“A caridade é amor recebido e dado; é graça (cháris). A sua nascente é o amor fontal do Pai pelo Filho no Espírito Santo. É amor que, pelo o Filho, desce sobre nós. É amor criador, pelo qual existimos; amor redentor, pelo qual somos recriados. Amor revelado e vivido por Cristo (cf.Jo13,1), é ‘derramado em nossos corações pelo Espírito Santo’ (Rm 5,5). Destinatários do amor de Deus, os homens são constituídos sujeitos de caridade, são chamados a se tornarem eles mesmos instrumentos da graça, para difundir a caridade de Deus e tecer redes de caridade”.[3]
Etimologia

A palavra amor presta-se a múltiplos significados na língua portuguesa. Pode significar afeição, compaixão, misericórdia, ou ainda, inclinação, atração, apetite, paixão, querer bem, satisfação, conquista, desejo, libido. O conceito mais popular de amor envolve, de modo geral, a formação de um vínculo emocional com alguém, ou com algum objeto que seja capaz de receber este comportamento amoroso e enviar os estímulos sensoriais e psicológicos necessários para a sua manutenção e motivação. Fala-se do amor das mais diversas formas: amor físico, amor platônico, amor materno, amor a Deus, amor à vida. É o tipo de amor que tem relação com o caráter da própria pessoa e a motiva a amar, no sentido de querer bem e agir em prol. As muitas dificuldades que essa diversidade de termos oferece, em conjunto à suposta unidade de significado, ocorrem não só nos idiomas modernos, mas também no grego e no latim. O grego possui outras palavras para amor, cada qual denotando um sentido específico. No latim encontramos também diversos termos para amor. Amar também tem o sentido de gostar muito, sendo assim possível amar qualquer ser vivo ou objeto. Amor platônico é uma expressão usada para designar um amor ideal, alheio a interesses ou gozos. Um sentido popular pode ser o de um amor impossível de se realizar, um amor perfeito, ideal, puro, casto. Trata-se, contudo, de uma má interpretação da filosofia de Platão, quando vincula o atributo “platônico” ao sentido de algo existente apenas no plano das idéias. Porque ideia em Platão não é uma cogitação da razão ou da fantasia humana. É a realidade essencial. O mundo da matéria seria apenas uma sombra que lembraria a luz da verdade essencial. A expressão amor platônico é uma interpretação equivocada do conceito de Amor na filosofia de Platão. O amor em Platão é falta. Ou seja, o amante busca no amado a Idéia, verdade essencial que não possui. Nisto supre a falta e se torna pleno, de modo dialético, recíproco. Em contraposição ao conceito de Amor na filosofia de Platão está o conceito de Paixão. A Paixão seria o desejo voltado exclusivamente para o mundo das sombras, abandonando-se a busca da realidade essencial. O amor em Platão não condena o sexo ou as coisas da vida material. Na obra Simpósio, de Platão, há uma passagem sobre o significado do amor. Sócrates é o mais importante dentre os homens presentes. Ele diz que na juventude foi iniciado na filosofia do amor por Diotima de Mantinea, que era uma sacerdotisa. Diotima lhe ensinou a genealogia do amor e por isso as idéias de Diotima estão na origem do conceito socrático-platônico do amor. Segundo Joseph Campbell, “não é por acaso que Sócrates nomeia Diotima como aquela que lhe deu as instruções e os métodos mais significativos para amar/falar. A palavra falada por amor é uma palavra que vem das origens.” Diferentemente do conceito de amor platônico, quando se fala do amor em Platão estamos nos referindo ao pensamento deste filósofo sobre o amor. A noção de amor é central no pensamento platônico. Em seus diálogos, Sócrates dizia que o amor era a única coisa que ele podia entender e falar com conhecimento de causa. Platão compara o amor a uma caçada, comparação aplicada também ao ato de conhecer, e distinguia três tipos de amor: o amor terreno, do corpo; o amor da alma, celestial, que leva ao conhecimento e o produz; e outro que é a mistura dos dois. Em todo caso o amor, em Platão, é o desejo por algo que não se possui. A temática do amor é comum a quase todos os filósofos gregos, entendido como um princípio que governa a união dos elementos naturais e como princípio de relação entre os seres humanos. Depois de Platão, entretanto, só os platônicos e os neoplatônicos consideraram o amor um conceito fundamental. Em Plutarco o amor é a aspiração daquilo que carece de forma, ou só a tem minimamente, às formas puras e, em última instância, à Forma Pura do Bem. Em “As Enéadas”, Plotino trata do amor da alma à inteligência; e na sua Epistola ad Marcelam, Porfírio menciona os quatro princípios de Deus: a fé, a verdade, o amor e a esperança. No pensamento neoplatônico, o conceito de amor tem um significado fundamentalmente metafísico ou metafísico-religioso.
A linguagem humana, quando quer dizer ou cantar o ‘amor’, realidade infinitamente profunda, dispõe de uma pluralidade de palavras que, no entanto, não conseguem exprimir devidamente, muito menos esgotar, toda a riqueza desta pequena palavra, pequena, mas de imenso significado. Santo Agostinho diz que é preciso ser capaz de decifrar a diferença entre amor e luxúria. Luxúria, de acordo com Santo Agostinho, é um grande vício e pecado, mas amar e ser amado é o que todo ser humano mais procura por toda a sua vida. Agostinho diz que a única pessoa que pode amar verdadeiramente e plenamente é Deus, porque o amor dos homens tem muitas falhas, tais como “ciúme, desconfiança, medo, raiva e discórdia.”
A Igreja Católica, nos ensinamentos do seu Magistério, afirma que o Amor é uma virtude teologal, uma “dádiva de si mesmo” e “é o oposto de usar”  e de afirmar-se a si mesmo. Aplicado nas relações conjugais humanas, o Amor verdadeiramente vivido e plenamente realizado é uma “comunhão de entrega e receptividade”, de “dádiva mútua do eu e de afirmação mútua da dignidade de cada parceiro”. Esta comunhão “do homem e da mulher” é “um ícone da vida do próprio Deus” e “leva não apenas à satisfação, mas à santidade“. Por esta razão, a sexualidade (e o sexo), que “é fonte de alegria e de prazer“, não exerce só a função de procriar, mas também um papel importante na vida íntima conjugal. A relação sexual conjugal é considerada como a grande expressão “humana e totalmente humanizada” do Amor idealizado pela Igreja, onde o homem e a mulher se unem e se complementam reciprocamente. Todo este amor conjugal proposto pela Igreja requer fidelidade, “permanência e compromisso”, que só pode ser autenticamente vivido “no seio dos laços do matrimônio“ e na castidade conjugal. A compreensão cristã é que o Amor vem de Deus, porque o amor é uma virtude teologal. O amor do homem e da mulher (eros em grego), bem como o amor altruísta para com os outros (ágape), são frequentemente contrastadas como um amor “ascendente” e “descendente”, respectivamente. Mas, estes dois tipos de amor são, em última instância, a mesma coisa. Muitos teólogos cristãos veem Deus como fonte de amor, que é espelhado no ser humano e os seus próprios relacionamentos amorosos. Alguns sentimentos são frequentemente associados com amor interpessoal: carinho, sentimentos de ternura e proximidade física; atração, satisfazer necessidades básicas emocionais; altruismo, preocupação para com alguém; reciprocidade, se o amor é recíproco; compromisso, um desejo de manter o amor; intimidade emocional, a troca de emoções e sentimentos; amizade, a estima entre amigos; parentesco, laços familiares; paixão, desejo constante; intimidade física: compartilhamento do espaço pessoal e íntimo; autointeresse, quando se visa recompensas; serviço, desejo de ajudar e de doar-se.

Na Roma antiga e nos territórios conquistados, a língua latina tinha várias palavras correspondentes à palavra “amor”, como a compreendemos hoje.
Caridade: Etimologicamente provém do latim cáritas, carìtas, caritátis, charitas, que significa caridade, amor; de carus, caro, de alto valor, digno de apreço, de amor. Não há verbo correspondente. Caritas é usado em latim nas  traduções da Bíblia cristã para significar “amor caritativo”. No entanto não é encontrada na literatura clássica pagã romana. É sinônimo e variante de beneficência e esmola. Seu contrário seria descaridade, desamor, desumanidade, egoísmo, malevolência. É a virtude teologal que conduz ao amor a Deus e ao amor por nosso semelhante; designa o ato pelo qual se beneficia o próximo, especialmente os pobres e os desprotegidos ou donativo, esmola, benefício ou ajuda que se dá aos pobres; designa ainda a disposição favorável em relação a alguém em situação de inferioridade, seja física, moral, social, espiritual; designa também compaixão, benevolência, piedade. Identifica-se hoje, frequentemente, a caridade com um afeto piegas que se traduz por gestos de assistência paternalista. O termo evoca, imediatamente, a ideia de esmola, tanto que a expressão viver de caridade pública, significa viver de esmolas. No entanto, caridade é algo bem mais profundo. No latim, sugere amor, dom, preciosidade, intimidade. De fato, caridade é oblação, virtude, atitude de comunhão, de doação. Mais ainda, é vida. Por isso mesmo, comporta exigências e é objeto  de preceito. Refletimo-la em perspectiva cristã, pois de realidade eminentemente cristã se trata. Pode identificar-se com amor se este está despido de ambiguidades. Supera, em objeto e motivação, a filantropia. Relaciona-se proximamente com a justiça enquanto esta é, primeiro que tudo, justificação e inculca ordem na comunhão de caridade, impedindo que esta degenere em confusão. A sua área coincide em grande parte com a graça (Cháris), pois tanto o ser do homem que esta atinge e sobrenaturaliza como as faculdades e ações que aquela beneficia e dinamiza constituem uma mesma e única realidade pessoal.
Amor: Etimologicamente provém do latim amor, amóris, amorem, designando amizade, afeição, desejo grande, paixão, objeto amado[4]. Amor: designado como forte afeição por outra pessoa, nascida de laços de consanguinidade ou de relações sociais; atração baseada no desejo sexual, desejo grande, afeição amorosa, paixão; relação amorosa; namoro; afeição baseada em admiração e graça, benevolência ou interesses comuns; forte amizade.  Designa a devoção e adoração a Deus ou ainda a devoção de uma pessoa ou um grupo de pessoas por um ideal concreto ou abstrato, seja a pátria, a profissão, a vocação, e a demonstração de zelo, de dedicação a um ideal. Ma mitologia grega e romana Amor era o nome de um deus que personificava o amor: Cupido para os romanos, Eros para os gregos, divindades aladas infantis subordinadas a Vênus e a Cupido. Pode ainda ser sinônimo de namoro e querido e antonímia de desinteligência, desprezo, indiferença e repulsão. Em nossa cultura amor possui diversos aspectos e conotações, segundo o sentido etimológico que veremos a seguir. “A palavra amor requer sempre um dicionário, e, para os cristãos o dicionário é Cristo Jesus”.[5] “Recordemos o vasto campo semântico da palavra amor: fala-se de amor à pátria, amor à profissão, amor ao trabalho; amor entre amigos, amor entre namorados ou apaixonados; amor entre esposos, amor entre pais e filhos; amor entre irmãos e familiares, amor ao próximo e amor a Deus. Em toda esta gama de significados, porém, o amor entre o homem e a mulher, no qual concorrem indivisivelmente corpo e alma e se abre ao ser humano uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam. Surge então a questão: todas estas formas de amor no fim de contas unificam-se sendo o amor, apesar de toda a diversidade das suas manifestações, em última instância um só, ou, ao contrário, utilizamos uma mesma palavra para indicar realidades totalmente diferentes?” [6]
Amare: Em latim, é a base para a palavra amor, como ela ainda está em italiano hoje. Os romanos utilizaram este termo tanto num sentido afetuoso, bem como em um sentido romântico ou sexual. A partir deste verbo viria amans, amante; amator, “amante profissional”; muitas vezes a noção amante, amicae, namorada, muitas vezes também a ser aplicada eufemisticamente para uma prostituta. O substantivo correspondente é amor, que também é usado no plural para indicar “amores”. Esta mesma raiz também produz amicus, amigo, (amicus é como que o guardião da alma, animi custos) e amicitia, amizade, muitas vezes baseada no benefício mútuo, e correspondendo às vezes mais de perto à dívida de gratidão ou influência. Cícero escreveu um tratado chamado Da Amizade, De Amicitia, que discute a noção com alguma profundidade. Ovidio escreveu um guia para o namoro chamado Ars Amatoria,  A Arte do Amor. Complicando um pouco a imagem, por vezes o latim usa amare quando é muito mais expresso em latim por placere ou delectare, que são utilizados mais coloquialmente, e o último dos quais é usado com frequência na poesia de amor.
Diligere: Do latim dilligere, muitas vezes tem a noção de ser afetuoso, ter estima, e raramente ou nunca é usado para o amor romântico. Dilectione, dilectionis, dileção, afeição, amor, amor de amigo. Esta palavra seria adequada para descrever a amizade de dois homens. Diligitur, é aquele que ama, que se afeiçoa, é o amigo zeloso, cuidadoso, atento, diligente, consciente, afeiçoado. Diligens, que é afeiçõado, que ama. O substantivo correspondente diligentia, no entanto, tem o sentido de diligência, cuidado; e tem pouca sobreposição semântica com o verbo. Diligas, amar, gostar, estimar, escolher, distinguir.
Observare, attendere, contemplare: Etimologia latina: observáre, “observar”, espreitar, espiar; esquadrinhar, guardar, refletir e vigiar é um sinônimo para “diligere”; denota amor de “estima” ou “afeto”. Attendere, e também contemplare, no latim e no italiano, tem o mesmo significado. Fixar os olhos em alguém, algo ou si mesmo; considerar(-se) com atenção; estudar(-se), chegar a uma conclusão; constatar, perceber, notar, conformar-se a  uma regra ou lei; praticar, obedecer; chamar a atenção para; advertir, expressar opinião (sobre); ponderar, replicar. É um tipo de amor emulativo, de aprendizagem, como o dos filhos que aprendem com os pais, ou os alunos com os mestres, ou do cientista que descobre e aprende com a observação, ou os fiéis com a infinitude e santidade divina. Designa o amor vivido para com Deus na contemplação e na oração.
Adoratio, adorationis:  Etimologia latina adoratìo, adoratiónis, adorar, prestar culto, veneração, admiração, êxtase, amor expressivo da vida mística e da relação com a divindade.
Placere: Etimologia latina placèo, placiónis, placére: “agradar”, prazer, sensação ou emoção agradável, ligada à satisfação de uma vontade, uma necessidade, do exercício harmonioso das atividades vitais, alegria, contentamento, júbilo, satisfação.
Delectare, dilectio: etimologia latina: dilectìo, dilectiónis, dileção, “amor, afeição”, amor espiritual que se dirige a alguém que se escolheu ou preferiu: filho, irmão, preferência, geralmente sigilosa ou inconsciente, por alguém ou por alguma coisa.
Afectus: Do latim afectus, afectionis,  afeição, ternura, amor como estado de alma, disposição de espírito, sentimento, ternura, afeto, vontade, sentimento afetuoso.
Desiderio: Do latim desidérius, desejo, forma de amor que denota saudade de algo ou alguém que se teve e que não se tem mais, necessidade, pedido, petição, memorial.
Connubio, connunctis: Do latim connúbio, connunctis, amor de união conjugal, comunhão e união nupcial entre o casal. Amor de aliança matrimonial, laço moral e união plena no casamento. Aproximação e união, conjunção, inclusive física entre um casal no matrimônio.
Ludus: Etimologia latina lúdus, ludí, jogo, divertimento, recreação. Modelo de amor que é jogado como um jogo; amor brincalhão, sem compromisso com os sentimentos da outra pessoa. Amor descompromissado.
Passio: Etimologia latina passìo, passiónis, “paixão”, passividade, sofrimento, perturbação moral, afecção da alma. A paixão designa um tipo de amor que é um forte sentimento que se pode tomar até mesmo como uma patologia provinda do amor. Manifestada a paixão em devida circunstância, o indivíduo tende a ser menos racional, priorizando o instinto de possuir o objeto que lhe causou o desejo. Sendo assim, o apaixonado pode transcender seus limites no que tange a razão e, em situações extremas, beira a obsessão.
Ciúme: Etimologia latina zelúmen, zelumìminis, zélus, ciúme amoroso, amor ciumento ou zeloso, desejo. Estado emocional complexo que envolve um sentimento penoso provocado em relação a uma pessoa de que se pretende o amor exclusivo; receio de que o ente amado dedique seu afeto a outrem; zelo. Na Bíblia designa o amor ciumento ou zeloso de Deus por seu povo, como em Dt 4,24; ex 20,5; Ex 13,22; Is 33,14, Sf 1,18, Hb 12,29.

Na Grécia antiga, a linguagem distingue diversos sentidos em que a palavra amor é usada. Por exemplo, o grego antigo tem a expressão philia, eros, agape, storge e adidasam. No entanto, com o grego como acontece com muitas outras línguas, tem sido historicamente difícil separar os significados das palavras totalmente. Ao mesmo tempo, o grego antigo em textos da Bíblia tem exemplos do verbo agapo sendo utilizado com o mesmo significado que phileo.
Pornéia: Etimologia grega, pornéia designa o amor desviado de seu curso em vários aspectos, especialmente o da perversão abusiva e da libertinagem, ou da luxúria, envolvendo o uso imoral das potencialidades humanas ligadas ao afeto ou a natureza lasciva da conduta; é um termo grego para exprimir o ‘amor antropófago’, o ‘amor’ do bebê pela mãe, o ‘ amor’ guloso do bebê que suga o peito da mãe como se quisesse, literalmente, devorá-la. Significa libertinagem, devassidão, perversão, abuso, exploração, prostituição, amor passional e egoísta.
Storgè: Storge (στοργή) storgē é o afeto natural, como aquele que sentem os pais para com os filhos. Este é o termo para exprimir o ‘amor’ entre os membros de uma família. É o nome da divindade grega da amizade. Expressa, por isso, o amor de quem tende a valorizar a confiança mútua, o entrosamento e os projetos compartilhados. O romance começa de maneira tão gradual que os parceiros nem sabem dizer quando exatamente. A atração física não é o principal. Os namorados-amigos não tendem a ter relacionamentos calorosos, mas sim tranqüilos e afetuosos. Preferem cativar a seduzir. E, em geral, mantêm ligações bastante duradouras e estáveis. O que conta é a confiança mútua e os valores compartilhados. Os amantes do tipo storge revelam satisfação com a vida afetiva. Acontece geralmente entre grandes amigos. Normalmente os casais com este tipo de amor conhecem muito bem um ao outro.
Philia: Philia (φιλία) philía, phileo, um virtuoso desapaixonado amor, era um conceito desenvolvido por Aristóteles. Em grego, significa altruísmo, generosidade. A dedicação ao outro vem sempre antes do próprio interesse. Quem pratica esse estilo de amor entrega-se totalmente à relação e não se importa em abrir mão de certas vontades para a satisfação do ser amado. Investe constantemente no relacionamento, mesmo sem ser correspondido. Sente-se bem quando o outro demonstra alegria. No limite, é capaz até mesmo de renunciar ao parceiro se acreditar que ele pode ser mais feliz com outra pessoa. É visto por muitos, como uma forma incondicional de amar. Inclui lealdade para com os amigos, familiares e comunidade, e exige firmeza, igualdade e familiaridade. Philia é motivada por razões práticas; uma ou ambas as partes se beneficiam da relação. Também pode significar o amor da mente. “Aqui se trata do amor amizade; é uma nova modalidade de amor, de um amor que surge no âmbito extra-familiar. Philia é o amor de amizade, fruto de uma opção pessoal. Nesta modalidade de amor, predomina a benevolência.” [7] O amor de amizade (philia) é retomado com um significado mais profundo no Evangelho de João para exprimir a relação entre Jesus e os seus discípulos.[8]  A interpretação cristã sobre a vinda de Jesus, engloba este tipo de amor para descrever o ato de Deus, que, ao ver a humanidade necessitada de salvação, entrega seu filho unigênito para ser morto em favor da humanidade.
Xenia: (ξενία, xenía), hospitalidade, era uma prática extremamente importante na Grécia antiga. Era uma amizade quase ritualizada, formada entre o dono da hospedagem e os seus clientes, que poderiam ser desconhecidos ou não. O acolhimento e a alimentação para com o hóspede, que era esperado apenas para retribuir com gratidão. A importância deste tipo de amor pode ser visto em toda a mitologia grega, em particular nos escritos de Homero, na  Ilíada e Odisseia.
Psique: Do grego psukhê, sopro, alma, espírito, mente, por oposição a corpo, refere-se a um amor espiritual profundo, baseado na mente e nos sentimentos eternos, infinitos, incorruptíveis, imperecíveis. É o amor capaz de transcendência, o amor espiritual, psíquico, mentar, imaterial.
Pragma: Do grego, pragmatikós, pragmatikê, pragmaticón, que concerne à ação; relativo a negócios, prática, negócio. Amor pragmático, amor que visualiza apenas o momento e a necessidade temporária, do agora. Seria uma forma de amor que prioriza o lado prático das coisas. O indivíduo avalia todas as possíveis implicações antes de embarcar num romance. Se o namoro aparente tiver futuro, ele investe. Se não, desiste. Cultiva uma lista de pré-requisitos para o parceiro ou a parceira ideal e pondera muito antes de se comprometer. Procura um bom pai ou uma boa mãe para os filhos e leva em conta o conforto material. É um amor interessado em fazer bem a si mesmo, amor que espera algo em troca.
Mania: Do grego manía, loucura, demência. Amor altamente emocional; instável; o estereótipo de amor doentio, excessivo, excitado, desequilibrado, egoísta.
Logos: Etimologia grega, logos, amor racional, da mente, segundo os princípios da lógica; sabedoria, amor capaz de doação sábia e plena, incorruptível. Termo grego que designa a sabedoria eterna. Jesus foi chamado de Logos, Sabedoria a nós revelada por e como amor.
Eros: Eros (ρως) érōs é amor apaixonado, com o desejo sensual e saudades. A palavra grega erota significa amor. Platão refina sua própria definição. Embora eros seja inicialmente sentida por uma pessoa, com a contemplação torna-se uma apreciação da beleza dentro dessa pessoa, ou mesmo se torne apreciação da beleza própria. Eros ajuda a alma a recordar conhecimento de beleza, e contribui para uma compreensão da verdade espiritual. Amantes e filósofos são todos inspirados a procurar pela verdade no eros. Algumas traduções o descrevem como o amor do corpo, ou amor entre homem e mulher, que não nasce da inteligência e da vontade, mas de certa forma impõe-se ao ser humano. Eros representa a parte consciente do amor que uma pessoa sente por outra. É o amor que se liga de forma mais clara à atração física, e frequentemente compele as pessoas a manterem um relacionamento amoroso continuado. A Grécia antiga deu o nome de Eros a esse tipo de amor. O Antigo Testamento grego usa só duas vezes a palavra eros, enquanto o Novo Testamento nunca a usa. A marginalização da palavra eros, juntamente com a nova visão do amor que se exprime através da palavra agape, denota sem dúvida, na novidade do cristianismo, algo de essencial e próprio relativamente à compreensão do amor.”[9]
Agape: Agape (γάπη) agápē, amor. Em grego moderno, o termos agapo significa eu te amo. A palavra agapo é o verbo amar. Geralmente, refere-se a um puro e ideal tipo de amor ao invés de a atração física sugerida pelo eros. No entanto, existem alguns exemplos de agape usada para significar o mesmo que eros. Ele também foi traduzido como “o amor da alma”. “Esta é a suprema modalidade de expressão amorosa. É o termo para ‘amor’ usado preferencialmente pelos autores do Novo Testamento. Agape quer designar o amor em sua manifestação divino-humana em sua expressão humano-divina, o amor cantado em termos sublimes pelo Apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios. Este é também o amor que a Primeira Carta de João explana com viva eloquência e vai culminar com a maravilhosa revelação: DEUS É AMOR (cf. 1Jo 4,16). Agape, que era um termo grego pouco usual na literatura profana, foi utilizado pelos autores neotestamentários para destacar mais claramente a novidade do amor cristão. Na forma verbal (agapáo: amar) aparece cento e quarenta e três vezes nos textos do Novo Testamento; como substantivo (ágape: amor, caridade, benevolência) ocorre cento e dezesseis vezes e, na forma de particípio (agapetós: querido, carríssimo, amado), aparece sessenta e uma vezes.”[10] “À diferença do amor passional e egoísta, a caridade (agape) é um amor de dileção e doação, que quer o bem do próximo. A sua fonte está em Deus, que amou primeiro e entregou seu Filho para reconciliar consigo os pecadores tornando-os seus eleitos e seus filhos. Atribuído primeiramente a Deus, esse amor, que é a natureza mesma de Deus, encontra-se, ao mesmo título no Filho, que ama o Pai como é amado pelo Pai, compartilha o amor do Pai pelos homens, homens pelos quais ele se entregou. Ele é também o amor do Espírito Santo, que o derrama nos corações dos cristãos, dando-lhes a cumprir o preceito essencial da Lei, que é o amor de Deus e do próximo, pois o amor dos irmãos, e até dos inimigos é a consequência necessária e a genuína prova do amor  a Deus; é o mandamento novo que Jesus deixou e que seus discípulos não cessam de incutir. É com esse amor que Paulo ama os seus, e é por eles amado. Esse amor baseado na sinceridade e na humildade, no esquecimento e no dom de si, no serviço e no mútuo sustento, deve-se provar por atos e observar os mandamentos do Senhor, tornando a fé efetiva. Tal amor é o vínculo da perfeição e ‘cobre os pecados’. Apoiando-se no amor de Deus, o agape nada teme. Exercendo-se na verdade, ele dá o genuíno sentido moral e abre o homem ao conhecimento espiritual do mistério de Deus e do amor de Cristo, que ultrapassa todo entendimento. Fazendo habitar na pessoa Cristo e toda a Trindade, esse amor alimenta uma vida de virtudes teologais, das quais a caridade (ágape) é a rainha. Pois a caridade nunca passará; mas se expandirá na visão plena, quando Deus concederá aos eleitos os bens que prometeu aos que o amam”.[11]

O Judaísmo emprega uma ampla definição de amor, tanto entre os povos como entre homem e a divindade. Quanto à primeira, o Torah afirma: “Amarás teu próximo como a si mesmo” (Levítico 19:18). No que diz respeito a Deus, o ser humano é ordenado a amar Deus com todo o seu coração, com toda a tua alma e com todo o seu poder “(Deuteronômio 6:5), tomada pelo Mishnah (um texto central da lei oral judaica), para referir-se às boas ações, ou ao desejo de sacrificar a própria vida ao invés de cometer certas transgressões graves, a sacrificar todos os seus bens e ser grato ao Senhor apesar da adversidade (tractate Berachoth 9:5). A literatura rabínica diverge quanto ao modo como esse amor pode ser desenvolvido, por exemplo, pela contemplação das boas ações divinas ou testemunhando as maravilhas da natureza. Quanto ao amor conjugal entre parceiros, este é considerado como um ingrediente essencial para a vida: “Viver a vida com a mulher que amas” (Eclesiastes 9:9). O livro bíblico Cântico dos Cânticos é considerado uma parafraseada metáfora romântica e lírica do amor entre Deus e seu povo, mas em uma leitura mais simples encaixa-se como uma canção de amor humano. O Rabino contemporâneo Eliyahu Eliezer Dessler é frequentemente citado por sua definição de amor no ponto de vista judaico como “dar sem esperar nada em troca” (de seu Michtav me-Eliyahu, vol. 1). Amor romântico por si só tem poucos ecos na literatura judaica, embora o Rabino Medieval Judah Halevi tenha escrito uma poesia romântica em língua árabe, em seus anos de juventude.
Dodim, Dodî, do hebraico dodî, amor, amado; um amor de desejo e de busca, um amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada.
Ahava: Em hebraico Ahava, ahabà é o termo mais comumente usado tanto para o amor interpessoal, o amor ao próximo e familiar, como para o amor de Deus. Na versão grega do Antigo Testamento, essa palavra hebraica é traduzida pelo termo de som semelhante agape, que se tornou o termo característico para a concepção bíblica do amor.
Hesed: A palavra hesed, do hebraico, exprime primeiramente a ideia de vínculo, de empenhamento, de ligação e compromisso. Hesed, basicamente combina o significado de “carinho” e “compaixão”, e às vezes é usado como “bondade amorosa”. Na esfera profana designa amizade, solidariedade, lealdade, sobretudo quando essas virtudes procedem de pacto ou de aliança. Em Deus esse termo exprime a fidelidade à sua aliança, e a bondade que dela decorrem em favor do povo escolhido; em outras palavras, exprime o amor de Deus por seu povo e os benefícios que dele decorrem. Mas esse hesed de Deus requer no homem também o hesed, isto é: o dom da alma, a amizade confiante, o abandono, a ternura, a ‘piedade’, em uma palavra, o amor que se traduz por uma submissão alegre à vontade de Deus”.[12]

Aspecto teológico-ascético

A caridade é o fundamento da ascética cristã. É o bem perfeito do espírito que excede a todos os bens. A caridade, embora seja uma virtude teologal, isto é, infundida por Deus na alma fiel, requer muito empenho e esforço humano para ser levada à plenitude. O amor-caridade precisa percorrer um caminho de purificação, que resgate o seu verdadeiro sentido. Ele não é apenas filantropia nem tampouco banalização da pessoa humana, mas sim virtude, força que vem de Deus e inebria o coração do homem e da mulher.
 Concretamente, como se deve configurar este caminho de ascese e purificação? Como deve ser vivido o amor, para que se realize plenamente a sua promessa humana e divina? Uma primeira indicação importante, podemos encontrá-la no Cântico dos Cânticos, um dos livros do Antigo Testamento bem conhecido dos místicos. Segundo a interpretação hoje predominante, as poesias contidas neste livro são originalmente cânticos de amor, talvez previstos para uma festa israelita de núpcias, na qual deviam exaltar o amor conjugal. Neste contexto, é muito elucidativo o fato de, ao longo do livro, se encontrarem duas palavras distintas para designar o ‘amor’. Primeiro, aparece a palavra ‘dodim’, um plural que exprime o amor ainda inseguro, numa situação de procura indeterminada. Depois, esta palavra é substituída por ‘ahabà’, que, na versão grega do Antigo Testamento, é traduzida pelo termo de som semelhante ‘agape’, que se tornou o termo característico para a concepção bíblica do amor. Em contraposição ao amor indeterminado e ainda em fase de procura, este vocábulo exprime a experiência do amor que agora se torna verdadeiramente descoberta do outro, superando assim o caráter egoísta que antes claramente prevalecia. Agora o amor torna-se cuidado do outro e pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, ao invés, o bem do amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes procura-o.
Faz parte da evolução do amor para níveis mais altos, para as suas íntimas purificações, que ele procure agora o caráter definitivo, e isto num duplo sentido: no sentido da exclusividade, ‘apenas esta única pessoa’, e no sentido de ser ‘para sempre’. O amor compreende a totalidade da existência em toda a sua dimensão, inclusive a temporal. Nem poderia ser de outro modo, porque a sua promessa visa o definitivo: o amor visa a eternidade. Sim, o amor é ‘êxtase’; êxtase, não no sentido de um instante de inebriamento, mas como caminho, como êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus: ‘Quem procurar salvaguardar a vida, perdê-la-á, e quem a perder, conservá-la-á’ (Lc 17, 33) — disse Jesus; afirmação esta que se encontra nos Evangelhos com diversas variantes (cf. Mt 10, 39; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; Jo 12, 25). Assim descreve Jesus o seu caminho pessoal, que O conduz, através da cruz, à ressurreição: o caminho do grão de trigo que cai na terra e morre e assim dá muito fruto. Partindo do centro do seu sacrifício pessoal e do amor que aí alcança a sua plenitude, Ele, com tais palavras, descreve também a essência do amor e da existência humana em geral. “[13]
“A caridade não é uma sábia relação de equilíbrio entre nós e os outros. Por inspirar-se na caridade de Cristo (Jo 13, 34-35), é mais exigente e mais generosa. Lança em nosso coração todo o sofrimento do mundo e, sob o assalto dessa força dolorosa, rompe, revelando-nos que existimos para amar como o mundo existe para ser amado: ‘O amor está acima de qualquer outro bem... É generoso; faz empreender coisas grandes e estimula a tudo o que há de mais perfeito e melhor nos céus e na terra, porque o amor nasceu de Deus e não pode saciar-se senão com o próprio Deus... Quem ama corre, voa e se alegra; é livre; nada o detem, nada lhe pesa, nada lhe custa; tenta fazer mais do que pode; não considera nada impossível, porque tudo crê possível e lícito. Por isso, pode tudo e realiza muitas coisas, diante das quais quem não ama desanima e cai’ (Imit. De Cristo,III, 5).”[14]
“A caridade não é só virtude a ser realizada, mas caminho a ser percorrido, itinerário espiritual pelo qual, sob a direção do Espírito Santo, podemos aproximar-nos de Deus e de suas perfeições morais. O apóstolo Pedro, exortando a praticar as virtudes cristãs, afirma: ‘Aplicai toda a diligência em juntar à vossa fé a virtude, à virtude o conhecimento, ao conhecimento o autodomínio a perseverança, à perseverança a piedade, à piedade o amor fraternal e ao amor fraternal a caridade’ (2Pe 1,6-7). E o apóstolo Paulo, depois de haver falado de alguns sinais da vida nova que  o crente realiza em Cristo (benignidade, humildade, bondade, perdão...), conclui dizendo: ‘Mas antes de tudo, revesti-vos de caridade, que é o vínculo da perfeição (Cl 3,14). A escola agostiniana ao pôr na caridade a base da espiritualidade, articula-a em ‘caridade desejosa’, ou seja, ansiosa por adaptar-se ao Ser supremo; ‘caridade ascendente’, que nos conduz gradualmente aos cumes da perfeição; ‘caridade combatente’, que contraria as inclinações más; e, finalmente, ‘caridade geradora’, que, partindo da premissa da caridade com Deus alimentada pela oração, pela humildade e pelo recolhimento, aponta como sinal de maturidade espiritual a caridade para com o próximo. Trata-se da possibilidade de nos referirmos ao Tu divino para transferir este Tu ao tu de nosso próximo. Assim a perfeição cristã na caridade se converte em imitação de Cristo (2Co 8,9) e em identificação de Cristo com nosso próximo (Mt 25, 35-40). Este é o caminho agradável a Deus ‘como oferenda de suave odor’ (Fl, 4,18). Este amadurecimento espiritual na caridade é indispensável não só para a vida do crente, mas também para a Igreja: ‘Se a fé e a caridade são os princípio da sua vida (a da Igreja); é claro que não se deve descuidar nada para dar à fé a segurança jubilosa e o alimento novo, a fim de tornar eficaz a iniciação e a pedagogia cristã indispensável para este fim: estudo mais assíduo e o culto mais devoto da Palavra de Deus serão certamente fundamento desta renovação. E a educação na caridade terá posteriormente lugar de honra; teremos que desejar ansiosamente a ecclesia caritatis, se quisermos que esteja em condições de renovar-se profundamente e de renovar o mundo que a rodeia; tarefa imensa, até porque, como se sabe, a caridade é a rainha e  a raiz das outras virtudes cristãs: a humildade, a pobreza, a religiosidade, a coragem da verdade e o amor da justiça e de todas as outras formas operantes do homem novo’”.[15]

Aspecto Místico

 “A via mística inicia-se no homem com a noite do espírito, onde do escuro do espírito só se contempla à luz do Espírito Santo. O ápice da mística consiste na contemplação, pelo auxílio da graça infusa. Embora o Espírito possa causar esta iluminação de ordem sobrenatural sem supor a prévia purificação do espírito, ordinariamente aquela se segue a esta, pois, como já se disse, assim como o corpo naturalmente ordena-se à alma, a ascética naturalmente orienta-se para a mística. Por isso, a graça supõe o exercício pleno da natureza humana, sobretudo da razão e das faculdades que lhe são subordinadas. A mística assegura-se basicamente pela contemplação, fundamento da união mística com o Amor. Enfim, a mística é a docilidade da alma ao Espírito Santo, por meio da qual se obtém a contemplação, que se dá mediante a infusão de graças e dons que revelam à alma os mistérios da fé; estabelecendo-lhe, por uma via unitiva, sua união com Deus, a partir da qual podem lhe advir, ainda que não necessariamente, outras graças extraordinárias, como as visões e revelações que, às vezes, acompanham a contemplação infusa.
Quanto à ascética, três são os graus de intensidade com que a caridade se estabelece na alma humana: principiante, proficiente e perfeita. Aqueles três graus da caridade constituem as três idades da vida interior do espírito. Eles estão correlacionados às duas vias de perfeição: a via ascética, de purificação e aperfeiçoamento, à qual pertencem os principiantes e os proficientes, e a via mística, de contemplação e união com a caridade divina, à qual pertencem os perfeitos. Estas duas vias são os acessos comuns à perfeição da vida espiritual.”[16]

Caridade no Antigo Testamento
“No Antigo Testamento o amor de Deus não é um sentimento nem simples comportamento, mas a ação de Iahweh, que se lembra de seu povo prisioneiro em terra estranha e que intervém historicamente em seu favor. Trata-se, pois, de amor ativo dirigido a uma coletividade (Jr 31,3; Dt 4,37; 10,15; Sl 41,12). Também pode revestir-se do aspecto de juízo severo, mas sempre se resolve com tonalidade positiva (Jr 31,20). Este amor, que se renova de geração em geração, tem planos e desígnio eternos. É, além disto, amor eletivo e criador. Iahweh cria o povo que quer amar e salvar livremente. Mas trata-se sobretudo de amor misericordioso, que salva, socorre e perdoa. Em todo o Antigo Testamento encontramos vestígios da resposta do homem ao amor eletivo e misericordioso de Deus. Deus é amado como libertador e capaz de socorrer (Sl 18, 2-4), porque escuta a súplica de seu servidor (Sl 116, 1). Este amor se expressa no serviço e na obediência (Dt 10,12ss), observando seus mandamentos (Ex 20,6; Dt 5,10) e seguindo seus caminhos (Dt 10,12).”[17]

Caridade no Novo Testamento
“A verdadeira novidade do Novo Testamento não reside em novas ideias, mas na própria figura de Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos, um incrível realismo. Já no Antigo Testamento a novidade bíblica não consistia simplesmente em noções abstratas, mas na ação imprevisível e, de certa forma, inaudita de Deus. Esta ação de Deus ganha agora a sua forma dramática devido ao fato de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da ‘ovelha perdida’, a humanidade sofredora e transviada. Quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras, mas constituem a explicação do seu próprio ser e agir. Na sua morte de cruz, cumpre-se aquele virar-se de Deus contra Si próprio, com o qual Ele Se entrega para levantar o homem e salvá-lo, o amor na sua forma mais radical. Jesus deu a este ato de oferta uma presença duradoura através da instituição da Eucaristia durante a Última Ceia. Antecipa a sua morte e ressurreição entregando-Se já naquela hora aos seus discípulos, no pão e no vinho, a Si próprio, ao seu corpo e sangue como novo maná (cf. Jo 6, 31-33). Se o mundo antigo tinha sonhado que, no fundo, o verdadeiro alimento do homem, aquilo de que este vive enquanto homem, era o Logos, a sabedoria eterna, agora este Logos tornou-Se verdadeiramente alimento para nós, como amor. A Eucaristia arrasta-nos no ato oblativo de Jesus. Não é só de modo estático que recebemos o Logos encarnado, mas ficamos envolvidos na dinâmica da sua doação. A imagem do matrimônio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebível: o que era um estar na presença de Deus torna-se agora, através da participação na doação de Jesus, comunhão no seu corpo e sangue, torna-se união. A ‘mística’ do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística e elevação que o homem poderia realizar.”[18]
“Nos sinóticos, as passagens em que se fala do amor de Deus e da relação entre Deus e o homem e entre um e outro, culminam sempre na exortação à misericórdia e ao espírito de reconciliação. Esta misericórdia de Deus se expressa no perdão dos pecados, que deve suscitar por parte do homem uma atitude idêntica para com o próximo (Mt 6,12.14-15; 18,35; Lc 6,37 etc.) Nos escritos de João ‘ o amor é concebido como energia primordial da vida, modo de ser, realização de Deus neste mundo’. Eles apresentam o amor em seu sentido absoluto (1Jo 3, 14.18; 4,7-8.19) e em seu aspecto de amor fraterno (1Jo 2,10; 3,10; 4,20 etc.) como o cumprimento e o selo de autenticidade de toda a vida cristã. Para João, o amor é a pedra angular do reino de Cristo, que se vai realizando na crise do mundo (Jo 3,16). Ele acentua o amor do Pai ao Filho, que em tudo e por tudo o mediador do amor divino, e enfatiza o amor do Filho por aqueles que o Pai lhe deu como ‘amigos’. Coroamento e fonte deste amor é o sacrifício do Filho, por meio do qual Deus realiza plenamente a salvação do mundo (Jo 13,1). Ao realçar o caráter ativo, em Cristo, do amor de Deus, João insiste no amor ao próximo, que tem em Cristo seu modelo e sua fonte. O Apocalipse, aberto com hino entoado pela fiel testemunha de Cristo àquele ‘que nos ama e nos lavou de nossos pecados’, vê o amor sobretudo à luz da teologia do martírio (12,11).
Para São Paulo a caridade é o fundamento da realidade futura. Descreve a nova situação criada pelo ato de amor Deus desenvolvendo o tema da nova era da história do mundo iniciada com Cristo. ‘O eterno amor de Deus, através do amor e do sacrifício de Cristo, converte-se no fato central da história do mundo’. Este amor que visa a criar o homem novo, é capaz de operar segundo o querer divino, que é querer de amor a todos. Paulo, com efeito, resume o essencial da vida de caridade em amor que se inspira no de Cristo ‘morto pelo irmão’. Este amor se estende aos inimigos, porque supõe o amor que Deus manifestou a nós, que éramos seus inimigos (Rm 5,10), manifestação que o mundo chama de loucura, e cujo testemunho supremo é a cruz. O dom amoroso de Deus Pai, em Cristo Jesus morto e ressuscitado por nós, supera e consuma todos os dons anteriores; constitui a salvação única, o caminho único para a vida de comunhão com Deus e, portanto, para a vida autenticamente humana. Paulo demonstra também o aspecto da caridade que consiste em ‘não fazer mal ao próximo’, e insiste em que o amor é o cumprimento da Lei. Também Tiago salienta o fato de que o amor é a lei do novo reino (2,8), deduzindo daí toda uma série de deveres práticos: não desprezar o pobre, vestir os nus e dar de comer aos que não tem, dar ao operário seu justo salário. Nas cartas de Pedro a exortação à caridade fraterna encontra aplicação sobretudo em relação aos ultrajes a que pode ver-se submetido o crente por sua fidelidade a Cristo (1Pd 3, 8-9).
Sendo a caridade a manifestação mais alta de Deus e o dom mais sublime outorgado ao homem, ela pode ser compreendida e tornar-se operante onde age o Espírito Santo. O apóstolo Paulo afirma que ‘o amor de Deus foi derramado em nossos corações por meio do Espírito Santo que nos foi dado’ (Rm 5,5). Sua força não é, pois, a dos homens, e sim potência do Espírito Santo, do qual é fruto: ‘O fruto do Espírito é: caridade, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, continência’ (Gl 5, 22-23). O singular indica que se trata de fruto único, do qual todas as virtudes enumeradas não são mais do que sua extensão ou desenvolvimento: o fruto do amor. O Apóstolo fala também de ‘amor do Espírito’ (Rm 15,30) e de ‘caridade no Espírito’ (Cl 1,8). Nossa participação na relação íntima entre o Pai e o Filho é selada e garantida pelo dom do Espírito (2Co 1, 21-22), mediante o qual se difunde me nossos corações o amor de Deus (Rm 5,5). O Espírito é quem dá testemunho, juntamente com nosso espírito, de que somos filhos de Deus (Rm 8,17), fazendo-nos compreender a realidade do amor de Deus e permitindo-nos assimilar os mandamentos de amor para viver deles.”[19]
“Levado assim pelo Espírito Santo a viver com o Senhor num diálogo de amor, o cristão se aproxima do próprio mistério de Deus. Pois este não revela logo de início quem ele é: fala, chama, age, e o homem chega por esse caminho a um conhecimento mais profundo. Dando o seu Filho, Deus revela que é aquele que se doa por amor (cf. Rm 8,32). Vivendo com seu Pai num diálogo de amor absoluto, revelando assim que o Pai e ele são ‘um’ desde toda a eternidade e que ele próprio é Deus, ‘ o Filho único que está no seio do Pai’ nos dá a conhecer o Deus que ‘ninguém jamais viu’ (Jo 1,18). Esse Deus vem a ser ele e o seu Pai na unidade do Espírito. E o ‘discípulo amado’, aquele que viveu a experiência da caridade e da fé, pode formular o que é sem dúvida a última palavra de todas as coisas: ‘Deus é amor’ (1Jo 4, 8.16). De todas as palavras humanas com suas riquezas e seus limites, é ‘amor’ a que melhor nos pode fazer entrever o mistério do Deus Trindade, o dom recíproco e eterno do Pai, do Filho e do Espírito Santo”.[20]

Aspecto prático

“Há quem acredite que a forma perfeita da caridade resida única e exclusivamente em subsidiar o alimento para o corpo. É, sem dúvida, uma efetiva expressão da caridade, mas não é a única nem a mais perfeita. A mais perfeita é a que se segue da caridade do pão para o corpo: a caridade da palavra da verdade para a alma, que nutre o espírito. Por isso Nosso Senhor diz que nem só de pão vive o homem (Mt 4, 4). De fato, a caridade entra-nos pelo espírito, mas deve ser manifesta em ações pelo corpo. Quando atua no homem, ela não se reduz ao bem do corpo e nem se aprisiona na alma, mas há de saber que ela busca e se direciona principalmente para o bem do espírito. Contudo, como a ação do espírito no homem, nas coisas terrenas, é mediada pelo corpo, a caridade deve promover também no próximo o bem do corpo. Contudo, deve promover no outro, mediante o bem do corpo, uma sincera abertura para o bem do espírito, pois só isso lhe capacitará de viver e exercer a virtude da caridade com o próximo, inclusive dando-lhe o alimento para o corpo.”[21] “A caridade cristã não se esgota na ascética, na mística ou nas devoções, mas antes se realiza na ‘caritas’, que é a forma suprema da atividade do cristão, determinando seu dinamismo que há de se realizar no terreno concreto da ação caritativa. É uma atitude do espírito que expressa sua realidade transformando-se em ação: ‘não amemos com palavras nem com língua, mas com ações e em verdade’ (1Jo 3,18). Desta ação caritativa são-nos dados alguns exemplos práticos: ‘Quem tiver duas túnicas reparta-as com aquele que não tem, e quem tiver o que comer faça o mesmo’ (Lc 3,11);’Dá ao que te pede e não voltes as costas ao que te pede emprestado’ (Mt 5,42); ‘Quando deres uma festa, chama os pobres, estropiados, coxos, cegos’ (Lc 14,13) etc. Em todo caso, há formas caritativas que, aparentemente, equivalem ao amor; no entanto, o fato de não serem inspiradas por genuíno espírito de caridade, acabam ficando alheias ao amor (2Co 13,3). A caridade supõe não só a vitória sobre o nosso egoísmo, mas também o exercício de humildade. A filantropia pode ocultar também egoísmo refinado. Pode brotar, não da preocupação com o bem da pessoa a que se dirige, mas do desejo, ainda que inconsciente, de receber elogio pelo o que fez: ‘Quando deres esmola, não te ponhas a tocar a trombeta em público, como fazem os hipócritas... com o propósito de serem glorificados pelos homens...Tu, porém, quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita’ (Mt 6,2-3). Também pode ser que, como no episódio de Ananias e Safira (At 5,1-11), seja sugerida pela busca do próprio interesse. O espírito de caridade, ao inspirar-se na caridade de Deus que nos amou como somos, deve expressar-se pela capacidade de separar o homem do mal que cometeu ou que continua cometendo (Rm 5,-8). Nossa caridade deve ser, pois, instrumento para devolver o homem a si mesmo; para descobri-lo como Deus quer que o seja, ajudando a sê-lo. Já que nossa resposta à caridade de Cristo deve expressar-se acolhendo a ação da sua graça, somos chamados também a manifestar espírito de caridade não só sabendo dar, mas igualmente sabendo receber. A antítese fé-obras, objeto frequente de controvérsias teológicas e de discussões entre as várias confissões cristãs, não só é superada, como também dissipada por meio da reta concepção da caridade (Tg 2,18). A fé não é somente firme certeza das promessas divinas, mas assentimento a uma vida nova que tem sua fonte em Cristo, e assentimento à criação em nós de vida que brota da sua e que São Paulo define como ‘a fé que opera por meio da caridade’ (Gl 5,6). Se a fé não depende das obras, porque as precede, através delas é que manifesta a sua autenticidade: ‘Meus irmãos, se alguém disser que tem fé, mas não tem obras, que lhe aproveitará isso? Acaso a fé poderá salvá-lo? (Tg 2,14). Não pode, porque ‘a fé sem obras é morta’ (Tg 2,26). E essas obras são as obras do amor (Tg 2,15-15). ‘É Deus quem nos salva. Mas nossas obras, comportamento de uma vida renovada por Deus, indicam que a salvação de Deus desceu até nós, que entramos em novo dia, o dia de Jesus Cristo. Sem este sinal das boas obras, estaremos ainda perdidos nas trevas do pecado’”.[22]
“As obras de misericórdia são as ações caritativas pelas quais socorremos o próximo em suas necessidades corporais e espirituais. Instruir, aconselhar, consolar, confortar: são obras de misericórdia espiritual, como também perdoar e suportar com paciência. As obras de misericórdia corporal consistem sobretudo em dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, dar moradia aos desabrigados, vestir os maltrapilhos, visitar os doentes e prisioneiros, sepultar os mortos. Dentre esses gestos de misericórdia, a esmola dada aos pobres é um dos principais testemunhos da caridade fraterna. E também uma prática de justiça que agrada a Deus. Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aquele que não tem, quem tiver o que comer, faça o mesmo (Lc 3,11). Dai o que tendes em esmola, e tudo ficará puro para vós (Lc 11,41). Se um irmão ou uma irmã não tiverem o que vestir e lhes faltar o necessário para a subsistência de cada dia, e alguém dentre vós lhes disser “Ide paz, aquecei-vos e saciai-vos, e não lhes der o necessário para manutenção, que proveito haverá nisso? (Tg 2, 15-16).”[23]

Pecado contrário à virtude da Caridade: Inveja

Etimologicamente, a palavra “inveja” vem do verbo latino videre que indica a ação de ver, e da partícula in. Desta forma, invidere significa olhar com maus olhos, projetar sobre o outro um olhar malicioso. Segundo o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa (1986) inveja é: desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem; desejo violento de possuir o bem alheio. O Dicionário Houaiss (2003), define inveja como: “sentimento em que se misturam o ódio e o desgosto, e que é provocado pela felicidade ou a prosperidade de outrem. É o desejo irrefreável de possuir ou gozar, em caráter exclusivo, o que é possuído ou gozado por outrem”. Para Tanquerey (1955, p. 531), a inveja é ao mesmo tempo: “paixão e vício capital”. Como paixão é uma espécie de tristeza profunda que se experimenta na sensibilidade à vista do bem que se observa nos outros; esta impressão é acompanhada duma constrição do coração que lhe diminui a atividade e produz um sentimento de angústia...” Segundo a Enciclopédia Europeo-Americana (1930, p. 203) a inveja, no seu conceito filosófico, “É uma paixão que é ao mesmo tempo, filha do orgulho e da malquerença. É um profundo pesar do bem que o outro goza e que se volta contra as pessoas a quem quer mal porque possuem o que ele por inveja quisera para si”.
 “A inveja é pecado mortal, com diz Tomás de Aquino, pois o não querer o bem do outro, ou entristecer-se com tal bem, implica no contrário à caridade, no amor ao próximo. Assim como os outros pecados, a inveja tem também suas filhas e filhos: murmuração, detração, ódio, exultação pela adversidade e aflição pela prosperidade.” Inerente à sua natureza é a procura do homem pela felicidade, remédio para a atroz contingência que sente em si mesmo a cada momento. E nessa interminável busca, almeja uma situação edênica em que não sinta mais “as duas leis” em si, como se queixava o Apóstolo (cf. Rm 7, 23). Com efeito, sente o homem o desregramento das paixões que o acompanham noite e dia, levando-o a viver numa constante batalha a fim de vencer as suas más inclinações. Dentre os vários vícios contra os quais as mais nobres almas têm de lutar, um lhe é particularmente humilhante por sua malícia: a inveja. Este sentimento tão antigo e tão comum é um dos mais difíceis de ser eliminados, e que mais tem causado sofrimento à humanidade. Nenhum juiz é tão rigoroso contra si mesmo como a inveja, pois continuamente aflige e castiga ao seu próprio autor. De acordo com Granada (1856, p. 126), “a inveja tortura quem a tem, abrasa o coração, seca as carnes, fadiga o entendimento, rouba a paz de consciência, faz tristes os dias da vida e afasta da alma o contentamento e a alegria”.
Às vezes se apresenta de forma sutil, sem nos darmos conta. Em outras ocasiões, deixa transparecer toda a sua virulência, destruindo na alma todo e qualquer bom sentimento. Entretanto, Verdiani (2006, p. 11) nos adverte que a inveja nem sempre é perceptível: Seu caráter dissimulado, secreto e paciente dificulta sua percepção pela maioria das pessoas, pois a inveja pode assumir condutas distintas, como: indiferença, ironia, maledicência, calúnia, infâmia, indignação, capricho, deboche, ódio, desespero, e tantos outros artifícios... Os autores clássicos são concordes em afirmar que os invejosos estão condenados a odiar de forma inextinguível, pois o ódio provocado pela ira se apazigua facilmente mediante a reparação, mas o ódio nascido da inveja não se amansa nem admite um pedido de desculpas. Mais ainda, irrita-se com os benefícios recebidos. Todavia, podemos nos  perguntar em que âmbitos a inveja se desenvolve e qual seu principal intento: a inveja é um dos pecados mais estendidos. Impera em todo o mundo e mora especialmente nas cortes e palácios, nas casas dos senhores e príncipes, nas universidades e cabidos e ainda, nos conventos de religiosos; seu objetivo e meta é perseguir aos bons e aos que por suas virtudes são altamente apreciados (Granada, 1848, p. 132). A inveja fez e continua fazendo verdadeiros estragos entre os homens. Pode ser comparada a um câncer silencioso ou a uma úlcera afetiva que corrói o convívio e tira a paz. Seu intuito não é somente possuir o que é do outro, pois, de acordo com Alberoni (1996, p. 55) “a inveja visa tanto o ter quanto o ser, os objetos como a qualidade, os bens como os reconhecimentos.”
Convém ressaltar que o estudo sobre a natureza da inveja tem uma larga tradição no âmbito da cultura católica e comporta diversas manifestações. Vários filósofos e teólogos fizeram pormenorizadas descrições fenomenológicas sobre essa temática. Também são numerosas as referências sobre o vício da inveja ao longo da literatura universal, desde o mundo grego até hoje. A partir das leituras da Retórica de Aristóteles, Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo, podemos encontrar esse comportamento presente em muitas de suas narrativas. O filósofo grego Antístenes (444-371 a.C.) já dizia que “a inveja consome o invejoso como a ferrugem ao ferro”. Ovídio (2007, p. 39), em sua obra Metamorfosis, nos apresenta a inveja como uma divindade terrível e venenosa, desprezada e odiada pelos mesmos deuses. As descrições feitas de seu aspecto e de seu âmbito são muito eloquentes: a inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas. A palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Têm os dentes manchados de tártaro, o ventre esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Ela ignora o sorriso, salvo aquele que é excitado pela visão da dor. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesmo, e este é seu suplício.
As definições sobre a inveja que oferecem os diversos filósofos no decorrer da História concordam notavelmente entre si. Na tradição aristotélica, ela é uma dor causada pela boa fortuna que goza alguns de nossos semelhantes. Para São Tomás de Aquino (Suma Teológica II-II, q. 36, a. 1.) a inveja é: “A tristeza do bem alheio enquanto se considera como mal próprio, porque diminui a própria glória ou excelência”. Santo Agostinho, citado por Granada (1856, p. 132), ao tratar da inveja, pede a Deus que afaste esse defeito não só dos cristãos, mas também de todos os homens “pois este é um vício diabólico”. O Bispo de Hipona também ressalta que: não foi repreendido o demônio porque caiu em adultério, ou porque fez algum furto, ou porque roubou a fazenda do próximo, mas porque tendo caído, teve inveja do homem que estava em pé. Os invejosos, à maneira de demônios, têm inveja dos seres humanos, não tanto porque pretendem alcançar a prosperidade deles, senão porque queriam que todos fossem miseráveis como eles. Olhai, pois, ó invejoso, que, dado que o outro não tivera os bens de que tu tens inveja, tu tão pouco os terias; e, pois ele os tem sem teu dano, não há porque te pese por ele. E se por ventura tens inveja da virtude alheia, olhai que nisso és inimigo de ti mesmo, porque de todas as boas obras de teu próximo tu serieis partícipe se estivésseis na graça de Deus; e quanto mais ele aproveita e merece, tanto mais aproveitas tu a ti mesmo. Por onde, sem razão tens inveja da sua virtude, antes deverias alegrar-se com ela para o proveito dele e o seu, pois participas de seus bens (Santo Agostinho apud Granada, 1856, p. 132, tradução).
Nas Sagradas Escrituras encontram-se diversas manifestações do vício da inveja. García (2008, p. 01) nos fornece diversos exemplos dessa paixão, bem como algumas de suas consequências: pela inveja que teve o demônio a nossos primeiros pais entrou a morte no mundo (Sb 2, 24). É maléfica para a saúde corporal como a cárie aos ossos (Pr.14, 30) e incompatível com a sabedoria (Sb 6, 23). Atrai sobre os culpáveis os mais severos castigos (Nm 12, 10-15). É contada entre os pecados que excluem do Reino de Deus (Gl 5, 21) e faz aos que o cometem dignos de morte (Rm 1, 29-32). Por inveja matou Caim a seu irmão Abel (Gn 4, 3-8), aborreceu Esaú a Jacó (Gn 27, 41), venderam a José seus irmãos (Gn 37, 4), perseguiu Saul a Davi (1Sm 18, 7-11). A inveja foi causa dos judeus entregarem Jesus à morte (Mc 15, 10; Mt 27, 18).
De acordo com Puentes (1856, p. 176) a inveja pode ser dividida em quatro graus em ordem crescente de gravidade. O primeiro e o mais grosseiro deles é desejar os bens temporais como a riqueza, a honra, as dignidades, a beleza física. Esse tipo de inveja é próprio dos mundanos e nasce da soberba. No segundo grau, costuma-se invejar os bens intelectuais como o conhecimento das ciências, as habilidades, os dons artísticos e as outras excelências que tocam ao entendimento. Puentes (1856, p. 176) também afirma que no terceiro grau de inveja tem-se como objeto as virtudes ou os bens espirituais do próximo, entristecendo-se porque estes são melhores e mais honrados ou porque são louvados como santos. Essa inveja procede da soberba espiritual e acomete aos que normalmente pertencem a algum instituto religioso ou aqueles que visam à perfeição. E finalmente, quando essa inveja cresce, chega ao supremo grau que se chama a inveja da graça fraterna e é um dos pecados contra o Espírito Santo, entristecendo-se de que o próximo seja virtuoso e tenha recebido graças e dons de Deus, desejando que ele não as tivesse. Dela procede o pecado gravíssimo de escândalo, que é dizer ou fazer algo para que o próximo perca a graça e a caridade. Esta foi a inveja de Lúcifer contra o homem, conforme afirma o livro da Sabedoria: “Pela inveja do demônio entrou a morte no mundo” (2, 24). Por isso, muitos autores declaram que esse pecado é o que mais faz o homem parecer-se com os demônios. Foi dessa maneira que pecaram os escribas e fariseus, que cheios de malícia e inveja, procuraram impedir a manifestação da graça divina no tempo em que Jesus começou a pregar o Evangelho.
Ao longo dos séculos, os moralistas cristãos elaboraram uma profunda análise dos sentimentos humanos, classificando cada um. Para eles a inveja é filha da soberba. O soberbo não é o que se considera melhor ou mais forte, ou mais importante que os demais, pois isto é o que sente o orgulhoso. O soberbo, no sentido clássico, é o que tem um desejo desordenado de ser a outro preferido. Convém recordar que ciúme e inveja são dois sentimentos distintos, embora sejam frequentemente confundidos. De acordo com Tomei (1994, p. 6), o ciúme possui também suas características essenciais. Sente-se ciúme por um bem que se possui e que se teme perder. Já a inveja se dá diante de algo que não se tem e que se deseja ter. Uma segunda característica que os distingue é que a inveja comumente se desenvolve num relacionamento entre duas pessoas, enquanto o ciúme tem uma estrutura triangular, ou seja, faz-se necessário que existam pelo menos três pessoas envolvidas. Ventura (1998, p. 11) também oferece alguns elementos para melhor se distinguir a inveja dos demais vícios: “Ciúme é querer manter o que se tem; cobiça é querer o que não se tem; inveja é não querer que o outro tenha”. O mesmo autor afirma que: “A inveja é um vírus que se caracteriza pela ausência de sintomas aparentes. O ódio espuma. A preguiça derrama. A gula engorda. A avareza acumula. A luxúria se oferece. O orgulho brilha. Só a inveja se esconde”.
Diversos autores afirmam que antes mesmo de a criança ser capaz de formular suas primeiras concepções sobre o mundo, ou ainda, antes de poder balbuciar alguma palavra, nela já se podem manifestar algumas características da inveja. É desde os primeiros contatos que o ser humano tem com o mundo, ainda na fase infantil primária, que já podem ser notados os primeiros sinais desse sentimento. Assim, Santo Agostinho, no livro das Confissões, já dizia: “Vi e observei um menino invejoso, ainda não falava e olhava lívido, com rosto amargurado ao seu irmãozinho de leite...”. São Tomás diz que a inveja do bem alheio enquanto diminui o nosso. Portanto, somente se suscita a respeito daqueles que se quer igualar ou superar. Isto não sucede em pessoas que diferem muito de nós em tempo, espaço e lugar, senão nas que nos estão próximas. Soares afirma que para entendermos adequadamente o sentimento de inveja é necessário tentar descobrir a estrutura básica que o antecede. É por meio de um modo sutil e secreto que a alma invejosa estabelece um colóquio consigo mesma em que o comparar-se passa a ser o seu estado habitual. Com efeito, o homem tem uma tendência a se comparar, especialmente se nessa comparação sai favorecido. E detesta que o comparem com os outros, sobretudo se no resultado fica-se num plano inferior. Comparar implica estabelecer medida, e definir parâmetros. Mede-se em oposição a algo que acreditamos ser melhor ou mais nobre. Para uns será alguém que é um pouco mais inteligente ou mais capaz, para outros será a aparência física ou algum bem material. O espírito de comparação impede o florescimento pleno do indivíduo e o faz perder a noção do verdadeiro repouso, pois ele passa a viver constantemente na preocupação, na inquietude e na ansiedade. O comparativo se julga numa situação de desvantagem ou inferioridade, quando percebe que o outro é superior num ponto que considera relevante. O invejoso sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos. Para entendermos adequadamente o sentimento de inveja é necessário tentar descobrir a estrutura básica que o antecede. O mecanismo intelectual que nos move à inveja é a comparação: Falar da inveja é falar sobre a comparação, sobre o processo de nos compararmos com as outras pessoas.  A filosofia clássica encontrou fenomenologicamente diversas características da alma invejosa. Contudo, pode-se afirmar que embora os sentimentos costumem apresentar manifestações específicas em cada pessoa, eles sempre se desenvolvem a partir de alguns eixos essenciais. As características que se seguem foram tomadas de diversos autores e procuram resumir o seu pensamento. Cremos que essas afirmações poderão ser úteis na tentativa de se traçar o perfil da alma invejosa: o primeiro mecanismo desencadeador da inveja é a comparação; a inveja normalmente se volta contra alguém que esteja próximo no tempo e no espaço. Por exemplo, nenhum aprendiz de compositor invejará Mozart; a inveja se faz mais presente entre coetâneos, pois a grande diferença de idade pode reduzir sensivelmente as probabilidades de inveja; enquanto o desejo se dirige ao objeto; a inveja se dirige ao possuidor, por isso se parece tanto com o ódio; caracteriza-se por certa complacência, ao saber de alguma desgraça que acometeu o outro, ou também certo pesar ao ver ou ouvir contar sua prosperidade; propensão a certo silêncio estudado ao conhecer ou ponderar as boas qualidades do próximo; tendência a rebaixar sistematicamente os méritos do outro, para poder assim mascarar sua inveja, interpretando-a como um justo protesto diante do imerecido prêmio recebido por seu opoente; tem o juízo alterado e entende as coisas ao revés: “choram quando os demais riem, e riem quando os demais choram”; sempre se apresenta reticente em louvar as qualidades do próximo; experimenta dois tipos de ódio: odeia o invejado por não poder ser como ele, odeia também a si mesmo por ser como é; quanto mais atenção ou favores o invejoso receber do invejado, mais forte será o desejo de eliminá-lo, pois a dádiva o recordará que está em estado de inferioridade; o invejoso é autodestrutivo, pois quando não consegue destruir o outro, dirige contra si mesmo parte desse ódio agressivo. Seu lema bem poderia ser: “Prefiro morrer antes que te ver feliz”; o invejoso prefere que o bem seja destruído, antes que o possua o outro (convém recordar o fato ocorrido com Salomão e as duas mulheres que afirmavam serem a mãe de uma mesma criança); quem inveja nunca descansa, nem sequer a expropriação forçosa da fortuna do outro não logra apagar sua inveja; o invejoso tende a semear divisões, não somente entre estranhos, mas até entre a sua família (recorde-se a história de José do Egito); excita sentimentos de ódio, fala mal do invejado, o calunia, o desacredita e lhe deseja mal; o invejoso é levado a conquistar imoderadamente as riquezas e as honras com o intuito de sobrepujar aqueles de quem tem inveja; em sua alma não há paz nem sossego, enquanto não consegue eclipsar ou dominar os próprios rivais. Como é muito raro que consiga alcançá-los, vive em perpétuas angústias; o invejoso necessita da confirmação dos demais, como ocorre com o vaidoso e outros tipos de inseguros; o invejoso não se atreve a confessar que sente inveja, mais facilmente reconheceria que está irado, que odeia ou inclusive que teme, pois tais paixões são menos vergonhosas e iníquas. Por isso está condenado a fingir sempre; tristeza e pesar, ódio e rancor, cólera e maledicência são alguns dos companheiros inseparáveis da inveja; o invejoso se difere do orgulhoso, entre outras razões, porque este não teme seus rivais e acredita ser insuperável; costumam usar métodos vis, por exemplo, escrever cartas ou fazer telefonemas anônimos para denegrir o invejado, quer no ambiente de trabalho, quer na sua família; exaltação de si mesmo com elogios excessivos das suas possíveis qualidades, procurando sempre diminuir os outros pela crítica maledicente; arrogância com as pessoas pressupostamente inferiores a ele e dificuldade de aceitar as pessoas com dotes superiores.
Contudo, pode-se afirmar que não é tarefa anacrônica estudar a fenomenologia da inveja. Uma recente pesquisa feita pela Agência Toledo & Associados nos fornece subsídios que atestam a atualidade desse tema. Na pesquisa, constatou-se que, dentre os sete pecados capitais, a inveja é a mais conhecida dos brasileiros. Enquanto 45% dos 407 entrevistados não se lembravam dos pecados capitais, todos conheciam a inveja e suas principais consequências. Sua esfera de estudo tampouco corresponde somente aos moralistas, pois diversos psicólogos, filósofos e sociólogos têm fornecido valiosas contribuições para a análise da alma invejosa. Convém recordar que, na atualidade, a inveja tem sido objeto de constantes debates e palestras, especialmente nos meios empresariais, onde se examina seu caráter nocivo para o bom desenvolvimento profissional. De acordo com o estudo do psicanalista austro-brasileiro Norberto Keppe, diversas enfermidades têm sua origem na inveja. Outro recente trabalho científico realizado pelo psicólogo Antônio Soares (2007, p. 2) constatou que a inveja é uma das mais influentes causadoras da infelicidade do homem contemporâneo. Soares (2007, p. 02) definia inveja como “a incapacidade de ver a luz das outras pessoas, a alegria, o brilho, a luminosidade de alguém, seja em que aspecto for”.
Existirá algum antídoto contra a inveja? À primeira vista, poderá parecer que para esse veneno não existe remédio inteiramente eficaz, pois segundo São Beda: “Pode-se ocultar o veneno da inveja, mas é difícil fazê-lo desaparecer”. Entretanto, de acordo com a doutrina católica, contra esse vício existem diversos antídotos ou remédios, pois a inveja não é um mal incurável. O primeiro e mais importante deles consiste na prática da caridade. Essa virtude se opõe diretamente ao vício da inveja. Por isso, Paulo afirma que a caridade é paciente e bondosa; não tem inveja; não é orgulhosa; não é arrogante; nem escandalosa; não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (1 2Cor 13, 4-8). Existe também outro remédio que está intimamente ligado à virtude da caridade, e acreditamos ser um dos principais antídotos contra a inveja. Esse remédio chama-se admiração.
Admirar é lançar um olhar consciente para aquilo que é superior; é maravilhar-se com a obra da graça atuando na alma do outro; é louvar a Deus que se manifesta na criatura. O admirar consiste em desapegar-se de si mesmo e está ligado à capacidade de reconhecer que não se tem direito a nada, pois de acordo com São Paulo (1Cor 4, 7): “Que é que possuis que não tenhais recebido?”.[24] A admiração mantém o ideal, a inveja o desgasta. A admiração é dinâmica, apostólica, e torna aguda a consciência. A inveja somente é capaz de pensar em si corroendo-se por dentro, provocando dissabor, desordem e infelicidade. O invejoso padece de uma angústia e de uma tristeza contínua, de modo contrário, quanta felicidade, paz e doçura tem a alma admirativa! Ela é despretensiosa, reconhecedora dos bens e das qualidades alheias, é restituidora dos dons concedidos por Deus. Convém recordar que tanto a palavra inveja quanto a palavra admiração tem ambas uma mesma origem e se caracterizam por um impulso do olhar. Invejar é lançar um olhar negativo para aquilo que se considera superior; enquanto que a admiração consiste num olhar benévolo e enlevado para aquilo que é excelente. A admiração é também considerada como o princípio de toda Filosofia, pois Platão, citando Sócrates, dizia: “Bem vejo, estimado Teeteto, que Teodoro compreendeu tua verdadeira natureza quando disse que eras um filósofo, pois a admiração é a característica do filósofo e a filosofia começa com a admiração” (Theait., 155 D). Aristóteles tem a mesma opinião quando afirma: “o começo de todos os saberes é a admiração...” (Met., A 2983).
Ao falar da virtude da admiração, Emery (1977) nos pergunta: “Não residiria o segredo do espírito de admiração, numa capacidade de unir duas atitudes quase contraditórias: a de tudo querer e a de se contentar com muito pouco?” Para este mesmo autor: A admiração é um dom do Espírito Santo. Pois humanamente não é possível maravilhar-se sempre, como tampouco se pode naturalmente ser ‘sempre alegre’ como nos exorta o Apóstolo. O dom espiritual da admiração está intimamente ligado à fé, à fé que consiste, como diz ainda São Paulo, em saber que as coisas visíveis são passageiras, e que só as invisíveis são eternas. Emery (1977) também afirma que a inveja é um apego a si mesmo e de modo contrário “o maravilhar-se consiste, pois, sempre num arrancar-se a esse egocentrismo. Há um desapego no maravilhar-se, um desapego em relação àquilo que indevidamente nos fecha os olhos...” A admiração é o meio de tudo possuir sem nada reter. Cumpre mais uma vez ressaltar que a admiração consciente e voluntária poderá ser um dos antídotos mais eficazes contra a inveja, e que também o combate a esse vício tem uma fundamental importância no desenvolvimento da vida espiritual. “Todas essas considerações devem gravar-se fundo em nossos corações, fazendo-nos fugir desse vício como de uma peste mortal. Alegremo-nos com o bem de nossos irmãos, e louvemos a Deus por sua liberalidade e bondade. Quem agir assim notará, em pouco tempo, como o coração estará sossegado, a vida em paz, e a mente livre para navegar por horizontes mais elevados e belos. Mais ainda: tornar-se-á ele mesmo alvo do carinho e da predileção de nosso Pai Celeste [...], pois onde impera o amor de Deus desaparece a inveja.”[25]
Muitos autores cristãos costumam falar de uma “inveja sã” ou positiva, que consiste em desejar algo do outro, por exemplo, a virtude, sem, entretanto, entristecer-se nem desejar nenhum mal ao próximo. Tal sentimento não é caracterizado como inveja, mas sim como emulação. Tanquerey (1955, p. 534) recorda que a emulação “é um sentimento louvável que nos leva a imitar, igualar, e, se possível for, a sobrepujar as qualidades dos outros, mas por meios leais”. Entretanto, para que a emulação seja uma virtude realmente cristã ela dever ser: honesta no seu objeto, isto é, ter por objeto não os triunfos, senão as virtudes dos outros, para imitá-las; nobre na sua intenção, não procurando triunfar dos outros, humilhá-los, dominá-los, senão tornar-se melhor, se for possível, para que Deus seja mais honrado e glorificado, e a Igreja mais respeitada; leal nos seus meios de ação, utilizando, para chegar a seus fins, não a intriga, a astúcia, ou qualquer outro processo ilícito, senão o esforço, o trabalho, o bom uso dos dons divinos. Assim entendida, é a emulação um remédio eficaz contra a inveja, porque não fere em nada a caridade e é, ao mesmo tempo, um excelente estímulo. E na verdade, considerar como modelos os melhores dentre os nossos irmãos para imitá-los, ou até mesmo para sobrepujá-los, é, afinal, reconhecer a nossa imperfeição e querer dar-lhe remédio, aproveitando os exemplos dos que nos rodeiam (Tanquerey1955, p. 534).

Santa Clara e a virtude da caridade

Santa Clara, em sua Quarta Carta dirigida a Inês de Praga, exorta a Princesa da Boêmia a contemplar ‘a caridade inefável com que Cristo quis padecer e morrer a morte mais vergonhosa’[26] e mais adiante exprime seu desejo de que Inês se inflame cada vez mais no ardor dessa mesma caridade[27]. Clara, sem dúvida, fez esta experiência, aprendeu a caridade em sua fonte mais sublime, na contemplação do Pobre Crucificado. O amor que jorrou do Coração transpassado de Cristo inundou o sensível coração de Clara, e sua vida não foi outra coisa senão o desdobramento desse eterno amor que ultrapassa toda compreensão humana, mas que começa já aqui nessa vida.  Segue alguns textos, que se encontram nos escritos clarianos, onde Clara estimula a pratica da caridade: “Pois os céus, com as outras criaturas, não podem conter (cfr. 2Par 2,6; 3Rs 8,27) o Criador: só a alma fiel é sua mansão e sede. E isso só pela caridade que os ímpios não têm, pois, como diz a Verdade: Quem me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei (Jo 14,21), e nós viremos a ele e nele faremos nossa morada (Jo 14,23).”[28]

“Olhe dentro desse espelho todos os dias, ó rainha, esposa de Jesus Cristo, e espelhe nele, sem cessar, o seu rosto, para enfeitar-se toda, interior e exteriormente, vestida e cingida de variedade (Sl 44,10), ornada também com as flores e roupas das virtudes todas, ó filha e esposa caríssima do sumo Rei. Pois nesse espelho resplandecem a bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade, como, nele inteiro, você vai poder contemplar com a graça de Deus.” [29]

“E amando-vos umas às outras com a caridade de Cristo, demonstrai por fora, por meio das boas obras, o amor que tendes dentro, para que, provocadas por esse exemplo, as Irmãs cresçam sempre no amor de Deus e na mútua caridade.” [30]

Se algo for enviado a alguém por parentes ou por outros, faça a abadessa que isso lhe seja dado. Ela mesma, se tiver necessidade, poderá usá-lo; se não, que o dê com caridade a uma Irmã que precise.”[31]

“Mas a abadessa e suas Irmãs devem tomar cuidado para não se irar nem se perturbar pelo pecado de alguém, porque a ira e a perturbação impedem a caridade em si e nos outros.”[32]

“A abadessa exorte e visite suas Irmãs e as corrija com humildade e caridade, não lhes prescrevendo nada que seja contra sua alma e a forma de nossa profissão. Admoesto e exorto no Senhor Jesus Cristo, que se guardem as Irmãs de toda soberba, vanglória, inveja, avareza (cfr. Lc 12,15), cuidado e solicitude deste mundo (cfr. Mt 13,22; Lc 21,34), da detração e da murmuração, da dissensão e da divisão. Antes, sejam sempre solícitas em conservar, umas com as outras, a unidade do amor mútuo, que é o vínculo da perfeição (Cl 3,14).” [33]

Fontes históricas

“Sobre as virtudes, a testemunha disse que poderia responder plena e verdadeiramente, se lhe perguntassem sobre cada uma em particular. E principalmente que dona Clara era toda inflamada em caridade e amava as suas Irmãs como a si mesma. E se alguma vez ouvia alguma coisa que não agradasse a Deus, tinha muita compaixão e procurava corrigi-lo sem demora. E porque foi assim, tão santa e tão ornada de virtudes, Deus quis que ela fosse a primeira mãe e mestra da Ordem.”[34]

“Também disse que tinham sido tão grandes sua humildade e bondade para com as Irmãs, sua paciência e constância nas tribulações, sua austeridade de vida, sua severidade no comer e no vestir, sua caridade para com todas, sua prudência e custódia na exortação das Irmãs suas súditas, e tinha sido tão graciosa e suave no admoestar as Irmãs e nas outras coisas boas e santas, que a sua língua não poderia dizer ou compreender de modo algum. Sua santidade era muito maior do que tudo que se pudesse dizer.”[35]

“A venerável abadessa não amava só as almas das filhas: servia também seus corpos com o zelo de uma caridade admirável. Muitas vezes, no frio da noite, cobria-as com as próprias mãos, enquanto dormiam, e queria que se contentassem com um regime mais benigno as que via incapacitadas para a observância do rigor comum. Se alguma, como acontece, estivesse perturbada por uma tentação, ou tomada de tristeza, chamava-a à parte e a consolava entre lágrimas. Às vezes, se ajoelhava aos pés das que sofriam para aliviá-las com carinho materno. As filhas, gratas por sua bondade, correspondiam com toda dedicação. Acolhiam o carinho afetuoso da mãe, respeitavam na mestra o cargo de governo, acompanhavam o procedimento correto da formadora e admiravam na esposa de Deus a prerrogativa de uma santidade tão completa”.[36]

“De fato, quando a própria bem-aventurada Clara estava no século, ainda menina, procurava desde a mais tenra idade superar este mundo frágil e imundo em um caminho limpo, guardando sempre com ilibado pudor o tesouro precioso de sua virgindade; dedicada vigilantemente às obras de caridade e de piedade, o bem-aventurado Francisco, ouvindo falar bem de sua louvável fama, começou logo a exortá-la para levá-la ao serviço perfeito de Cristo.” [37]




[1] Catecismo da Igreja Católica, 1822.
[2] Ibidem, 1823, 1824, 1825,1827,1829.
[3] Encíclica Caritas in Veritate, Papa Bento XVI.
[4] Dicionário Houaiss da língua portuguesa.
[5] Um exegeta.
[6] Encíclica Deus Caritas Est, 2.
[7] ALVES, Ephaim F., revista Grande Sinal, julho-agosto de 2006.
[8] Cf. Encíclica Deus Caritas Est, 3.
[9] Ibidem.
[10] ALVES, Ephaim F., revista Grande Sinal, julho-agosto de 2006.
[11] Bíblia de Jerusalém, Co 13,1 (nota e).
[12] Ibidem, Os 2,21 (nota d).
[13] Encíclica Deus Caritas Est, 6.
[14] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Ed. Paulinas,1989.
[15] Ibidem.
[16] Paulo Faitanin, Instituto Aquinate.
[17] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Ed. Paulinas,1989.

[18] Papa Bento XVI, Encíclica Deus Caritas est, 12-13.
[19] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Ed. Paulinas,1989.
[20] Vocabulário de Teologia Bíblica. Ed. Vozes, Petrópolis, 1972.
[21] www.aquinate.net
[22] Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Ed. Paulinas,1989.
[23] Catecismo da Igreja Católica, 2447.
[24] A palavra inveja vem do latim In-videa, ou seja, não ver. O vocábulo admirar tem sua origem etimológica em: ad-mirar, que quer dizer: olhar para. É famoso o trocadilho de Santo Agostinho que diz: “Video, sed non invideo”. Vejo, mas não invejo... (Apud São Tomás de Aquino, Catena Áurea in Io. cp9 lc 4).
[25] Inácio de Araújo Almeida, membro dos Arautos do Evangelho.
[26] 4CtIn 23.
[27] Cf.4CtIn  27.
[28] 3CtIn 22-23.
[29] 4CtIn 15-18.
[30] TSC 59-60.
[31] RSC 8, 9-10.
[32] Idem 9, 5-6.
[33] Ibidem 10,1.6-7.
[34] ProcC 13,3.
[35] Idem 14,4.
[36] LSC 38.
[37] 3Lm 1.

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